quarta-feira, 23 de maio de 2018

Laranja Mecânica - Análise filosófica


Produzido a partir da obra literária de Anthony Burguess (A ClockWork Orange, 1962), o filme Laranja Mecânica é uma superprodução considerada a obra-prima do diretor de cinema Stanley Kubrick. Nesta obra, Kubrick procurou representar com a maior capacidade e fidedignidade possíveis o conteúdo expresso no livro. Entretanto, antes de qualquer coisa, convém lembrar que toda obra ou produção artística é uma compilação da realidade ou de como a mesma se manifesta nos caracteres e percepções do individuo. No caso específico de Burguess, tal caracterização se torna ainda mais válida se se observar que o mesmo era originário da Inglaterra, nascido em 1917, e passou por um momento histórico mundial de grande importância, já que o mesmo lutou como militar na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) de modo a cooperar com a “Tríplice Aliança” contra a “Tríplice Entente”. Este fato e as circunstancias vividas durante o período bélico provocou no autor uma sensibilidade notável (e de fato desprezível) diante da selvageria e brutalidade que a Humanidade atingira e dos métodos e medidas repressivas e ditatoriais que vieram atrelados ao mundo moderno.

De fato, A Laranja Mecânica se constitui de um relato da vida do Jovem Alexandre ou Alex; rapaz muito inteligente, porém imerso em sua contextualidade de sexo, drogas, violência e amor pela musica erudita de Ludwig Van Beethoven. Alex e seus três “drugues” (Pete, George e Tapado) formam um grupo de punks que adoram divertir-se sem limites, obtendo prazer através de delitos e da criminalidade.



Neste quesito seria de interessante destaque as assertivas da área da Psicologia Criminal, destacadamente a Teoria do Desenvolvimento Moral e do Processo Cognitivo que prevê o “comportamento delitivo ligado a certos processos cognitivos, isto é, a seu modo de perceber o mundo, ao próprio contexto subjetivo do delinqüente, ao grau de desenvolvimento e moral deste, às suas normas e valores e as outras variáveis cognoscitivas da personalidade” (MOLINA,1992).

Entretanto, apesar de altamente importante o entendimento e compreensão do fenômeno da delinqüência, o fato mais marcante na produção cinematográfica em questão é a transformação de Alex de um punk socialmente sem moral para um cidadão “exemplar” doutrinado e, conseqüentemente, sua volta ao estado de rebelde.

Como muito bem elaborado no cinema, uma vez preso na Prisão Estatal numero 84-F para cumprimento de um pena de 14 anos de reclusão social, o protagonista ver-se modificado radicalmente do seu velho estado radical de viver ao enquadramento de normas “positivistas” privilegiadoras de ordem como objeto e possibilidade de progresso.

Para Alex “a emoção do roubo, da violência, a necessidade da vida fácil se justifica à medida em que temos provas insofismáveis e incontroversas de que o inferno existe“ (BURGUESS,1962). Se este simples discurso já revela um desajustamento sócio-cultural, pode-se concluir que é pela negação ou indução do mesmo que o próprio se propõe - apesar de satiricamente em seu interior – haver uma aceitação do “Deus Salvador” e da fé como refúgio (como pode ser bem observado através de suas palavras). E seria desta interação que Alex confirmaria os rumores ouvidos sobre uma nova técnica desenvolvida por cientistas: A Técnica Ludovico. É precisamente nesta técnica de condicionamento bio-fisiológico por meio de associações diretas que se encontra, talvez, um dos temas mais discutíveis no decorrer da narrativa.

Nesse sentido, vale esclarecer que intrinsecamente, todo condicionamento é uma aprendizagem por associação, embora deve-se deixar bem claro, que a aprendizagem é uma mudança relativamente permanente no comportamento de um organismo em decorrência da experiência e que o condicionamento - processo de aprender associações - não é a única forma de aprendizagem.



Partindo dos estudos dos Processos Psicológicos e do avanço da Psicologia enquanto Ciência, existem dois tipos de condicionamento, o Condicionamento Clássico e o Condicionamento Operante. O último se dá ao aprendermos associar a resposta e sua conseqüência e, assim, a repetir os atos seguidos de recompensa e evitar os atos seguidos de punição, este envolve o comportamento operante - o ato opera no ambiente para produzir estímulos de recompensa ou punição. No primeiro, o Condicionamento Clássico proposto por Ivan Pavlov, aprendemos associar dois estímulos e, assim, antecipar eventos. Percebe-se neste o caráter altamente adaptativo, já que ele ajuda a preparar os organismos para os bons e maus eventos.

No Condicionamento Pavloviano, existem alguns processos ligados a adaptação e aprendizagem efetiva do processo de aprender associações, este seria composto por: Estímulos Incondicionados, Condicionados e Neutros; além de Respostas Incondicionadas e Condicionadas.

Em se tratando, especificamente da Técnica Ludovico na qual foi submetido o Jovem Alex, e aplicado pelo Dr.Brodsky, seria possível compararmos pela análise da ficção os conceitos anteriores como: Estimulo Incondicionada (soro), Resposta Incondicionada (dor, náusea), Estimulo Neutro (imagens e musica). Estas associações com a repetição de sessões e de aparelhos tecnológicos promovera um Estimulo Condicionado ligado às imagens e a música de Beethoven (necessariamente a Nona Sinfonia) que produziriam uma Resposta Condicionada que gerou dores e náuseas ao garoto sempre que imposto a situações similares as que ele observara nos filmes - o que lhe causava repúdio biológico e alteração a nível fisiológico.

Sobre este assunto, é salutar destacar que após Alex adquirir o seu “status de liberdade” e gozar de sua autonomia limitada na sociedade, o condicionamento que é clássico, também mostra-se operante. Visivelmente o antigo punk produzia respostas automáticas a determinados eventos, entretanto, o seu poder de escolha ainda permanecia, relativamente, uma vez que ele podia através de sua interação com o mundo saber o que lhe seria aversivo ou não.

Já no final do filme, graças a um processo de condicionamento denominado Extinção e pela inter-relação com o seu estado de coma que durou alguns meses lhe foi permitido pelo declínio de uma característica condicionada e pela diminuição da resposta que ocorre quando o estimulo não sinaliza mais um Estimulo Incondicionado iminente, ver-se livre novamente da experiência submetida, podendo com isso voltar a ser o que sempre quis ser e tornar a ouvir o clássico Beethoviano.

Finalmente, Laranja Mecânica é uma rica ilustração de temas importantes e ainda em pauta na Contemporaneidade, permite não só aliar o estudo teórico em relação com sua praticidade, como também levantar questões relativas à Ética e Bioética - seja ela em Pesquisa como em técnicas adaptativas. Afinal a Bioética é a parte da Ética - ramo da Filosofia que enfoca as questões referentes à vida humana e, portanto, acerca da saúde.

Sem querer entrar em detalhes e presunções sobre a eticidade do papel da política nos dois casos, o que vale é ressaltar o comportamento e afirmação do Alex ao dizer que “Ser bom pode não ser agradável”, o que nos remete ao fato de que o comportamento moral do homem, que se apresenta como consciente, obedece a forças ou impulsos que escapam ao controle de sua consciência. Freud dá uma contribuição importante a Ética, pois convida-a a levar em consideração essa motivação inconsciente. Assim sendo, a proposta freudiana é remeter o campo da ética a indagar-se se o ato propriamente moral é aquele no qual o individuo age consciente e livremente, e mais ainda, depreender sobre a possibilidade de atentar a possibilidade de que os atos praticados por uma motivação inconsciente devam ser excluídos (ou não) do campo moral.





MOLLINA, A.Criminologia.2.ed.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,1997.
MYERS,D. Psicologia.7.ed.Rio de Janeiro:LTC, 2006.

Fonte: http://recantofilosofico.blogspot.com.br/2010/01/a-laranja-mecanica-analise.html

10 Filmes sobre Tecnocracia que Você Precisa Assistir


Por Philippe Leão
 
A tecnocracia é um modelo de governo funcional a partir do uso das técnicas para determinar a condição humana. Isso significa que, no lugar do uso de convenções econômicas obsoletas – como o uso da mão de obra humana – seriam utilizados métodos científicos para gestão da sustentabilidade humana. Contudo, o avanço da técnica em uma velocidade assustadora proporcionou uma série de distopias no Cinema, trazendo narrativas que demonstram o uso da técnica como controle do ser, seja na esfera política coletiva ou individual. Confira algumas:
– Blade Runner





Diretor: Ridley Scott
Ano: 1982
País: E.U.A


No início do século XXI, uma grande corporação desenvolve um robô que é mais forte e ágil que o ser humano e se equiparando em inteligência. São conhecidos como replicantes e utilizados como escravos na colonização e exploração de outros planetas. Mas, quando um grupo dos robôs mais evoluídos provoca um motim, em uma colônia fora da Terra, este incidente faz os replicantes serem considerados ilegais na Terra, sob pena de morte. A partir de então, policiais de um esquadrão de elite, conhecidos como Blade Runner, têm ordem de atirar para matar em replicantes encontrados na Terra, mas tal ato não é chamado de execução e sim de remoção. Até que, em novembro de 2019, em Los Angeles, quando cinco replicantes chegam à Terra, um ex-Blade Runner (Harrison Ford) é encarregado de caçá-los.

– Metropolis

Diretor: Fritz Lang
Ano: 1927
País: Alemanha
O ano é 2026, a população mundial se divide em duas classes: a elite dominante e a classe operaria; esta condenada desde a infância a habitar os subsolos, escravos das monstruosas máquinas que controlam a metrópolis. Quando o filho do criador de Metrópolis se apaixona por Maria, a líder dos operários, tem inicio a mais simbólica luta de classe já registrada pelo cinema.

 
– Tempos Modernos

Diretor: Charlie Chaplin
Ano: 1936
País: E.U.A
Um operário de uma linha de montagem, que testou uma “máquina revolucionária” para evitar a hora do almoço, é levado à loucura pela “monotonia frenética” do seu trabalho. Após um longo período em um sanatório ele fica curado de sua crise nervosa, mas desempregado. Ele deixa o hospital para começar sua nova vida, mas encontra uma crise generalizada e equivocadamente é preso como um agitador comunista, que liderava uma marcha de operários em protesto. Simultaneamente uma jovem rouba comida para salvar suas irmãs famintas, que ainda são bem garotas. Elas não tem mãe e o pai delas está desempregado, mas o pior ainda está por vir, pois ele é morto em um conflito. A lei vai cuidar das órfãs, mas enquanto as menores são levadas a jovem consegue escapar.
 
– 1984

Diretor: Michael Radford
Ano: 1984
País: Reino Unido
Winston Smith (John Hurt) é uma figura trágica que se atreveu a se apaixonar numa sociedade totalitária onde as emoções são ilegais.
 
– Wall-E

Diretor: Andrew Stanton
Ano: 2008
País: E.U.A
Após entulhar a Terra de lixo e poluir a atmosfera com gases tóxicos, a humanidade deixou o planeta e passou a viver em uma gigantesca nave. O plano era que o retiro durasse alguns poucos anos, com robôs sendo deixados para limpar o planeta. Wall-E é o último destes robôs, que se mantém em funcionamento graças ao auto-conserto de suas peças. Sua vida consiste em compactar o lixo existente no planeta, que forma torres maiores que arranha-céus, e colecionar objetos curiosos que encontra ao realizar seu trabalho. Até que um dia surge repentinamente uma nave, que traz um novo e moderno robô: Eva. A princípio curioso, Wall-E logo se apaixona pela recém-chegada.
 
– Ela

Diretor: Spike Jonze
Ano: 2014
País: E.U.A
Em um futuro próximo na cidade de Los Angeles, Theodore Twombly (Joaquin Phoenix) é um homem complexo e emotivo que trabalha escrevendo cartas pessoais e tocantes para outras pessoas. Com o coração partido após o final de um relacionamento, ele começa a ficar intrigado com um novo e avançado sistema operacional que promete ser uma entidade intuitiva e única. Ao iniciá-lo, ele tem o prazer de conhecer “Samantha”, uma voz feminina perspicaz, sensível e surpreendentemente engraçada. A medida em que as necessidades dela aumentam junto com as dele, a amizade dos dois se aprofunda em um eventual amor um pelo outro.


– Ghost in the Shell


Diretor: Mamoru Oshii
Ano: 1995
País: Japão
Major Motoko é uma agente cibernética e líder da unidade do serviço secreto Esquadrão Shell. Formado pelo governo para combater a onda de crimes, eles são informados de que um famoso criminoso, “expert” em computadores, está no Japão. O suspeito é conhecido apenas pelo codinome “Mestre Marionete”.


– Akira


Diretor: Katsuhiro Otomo
Ano: 1988
País: Japão


Kaneda é um líder da gangue de motoqueiros, que tem um amigo próximo envolvido em um projeto governamental secreto chamado Akira. Para salvar seu amigo, Kaneda pede ajuda para vários grupos como: ativistas anti-governo, políticos gananciosos, cientistas irresponsáveis e poderosas forças militares. Durante o confronto, Tetsuo recebe uma força sobrenatural que resulta em conseqüências para o resto de sua vida.


– Laranja Mecânica


Diretor: Stanley Kubrick
Ano: 1971
País: Reino Unido
Em uma desolada Inglaterra do futuro, a violência das gangues juvenis impera, provocando um clima de terror.
Alex (Malcolm McDowell) lidera uma das gangues e, após praticar vários crimes, é preso e submetido à reeducação pelo Estado, com base em uma técnica de reflexos condicionados.
Quando ele volta à sua vida em liberdade, é perseguido por aqueles que foram suas vítimas, Mr. Alexander (Patrick Magee) e sua esposa.


– Koyaanisqatsi


Diretor: Godfrey Reggio
Ano: 1982
País: E.U.A
Uma obra-prima cinematográfica tão extraordinária que é um deleite para os sentidos, um estímulo para a mente e que acaba por “redefinir o potencial da arte de fazer cinema”(The Hollywood Reporter). O consagrado diretor Godfrey Reggio, o inovador diretor de fotografia Ron Fricke e o compositor ganhador do Globo de Ouro* Philip Glass criaram este “filme mágico, tão rico em beleza e detalhes que a cada vez que o assistimos, ele se torna um filme novo e diferente” (Leonard Maltin). 
“Único… profundo… magnético e instigante”(Boxoffice), Koyaanisqatsi contrasta a tranqüila beleza da natureza com o frenesi da sociedade urbana contemporânea. Reunindo imagens de tirar o fôlego a uma premiada e eloqüente trilha sonora, é um trabalho “original e fascinante” (People) – “um dos maiores filmes de todos os tempos” (Uncut).

Fonte: http://cineplot.com.br/index.php/2015/08/14/10-filmes-sobre-tecnocracia-que-voce/

terça-feira, 22 de maio de 2018

O que é fascismo?

IFMG Ribeirão das Neves participa da Marcha do Dia Internacional da Luta antimanicomial

 
Na última sexta-feira, estudantes e professores do IFMG Campus Ribeirão das Neves participaram da tradicional marcha de 18 de Maio, que comemora o Dia Internacional da Luta antimanicomial. A Marcha desse ano teve como lema "Liberdade, ainda que tam tam" e além de reivindicar mais Direitos Humanos no tratamento de indivíduos que sofrem de transtornos mentais, também protestou contra os cortes de verbas da saúde pública, que levam à precarização do Sistema Único de Saúde (SUS). O cortejo saiu da Prefeitura de Ribeirão das Neves e caminhou até a Praça de Neves, onde aconteceu uma manifestação festiva com música, poesia e leitura de manifestos.a5a736d6-a979-4865-b44c-38066be9fbd3.jpg
877b3c23-6f12-4436-a1f7-a9e37b450d96.jpg
índice.jpeg
A participação do IFMG na luta se deu em parceria com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) de Ribeirão das Neves, e se fundamenta pela crítica à tecnocracia, ao tecnicismo e ao fascismo, degenerações da modernidade que a filosofia do "Ensino Integrado" - integração dos conhecimentos humanísticos e técnicos - visa combater.
82789b61-de5c-4fd8-8a6a-d4628e5baf53.jpg
4f5156f3-71a9-4f03-a260-ae8c3559dfc9.jpg
índice2.jpeg 

Fonte: https://www2.ifmg.edu.br/ribeiraodasneves/noticias/ifmg-ribeirao-das-neves-participa-da-marcha-do-dia-internacional-da-luta-antimanicomial

terça-feira, 15 de maio de 2018

Umberto Eco: 14 lições para identificar o neofascismo e o fascismo eterno

Umberto Eco | Roma - 21/02/2016 - 16h21


Intelectual italiano, romancista e filósofo, autor de "O pêndulo de Foucault" e "O Nome da Rosa", morreu em 19 de fevereiro, aos 84 anos; "O fascismo eterno ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis", diz Eco

A Revista Samuel reproduz o texto de Umberto Eco "Ur-Fascismo", produzido originalmente para uma conferência proferida na Universidade Columbia, em abril de 1995, numa celebração da liberação da Europa:

"O Fascismo Eterno"
Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto. 
Depois, em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”. Contarei esta história no fim do meu discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não significava “liberação”.
Passei dois dos meus primeiros anos entre SS, fascistas e resistentes, que disparavam uns nos outros, e aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal exercício. 
Wikicommons

Hitler e Mussolini em Munique, em 1940
Em abril de 1945, a Resistência tomou Milão. Dois dias depois os resistentes chegaram à pequena cidade em que eu vivia. Foi um momento de alegria. A praça principal estava cheia de gente que cantava e desfraldava bandeirolas, invocando Mimo, o líder a resistência na área, em alto brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros confrontos. Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas, pálido; tentou acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali esperando seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada pelos grandes discursos históricos de Mussolini, cujos passos mais significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo falo com voz rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que caíram pela liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava, os membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto, festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos, preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que liberdade de palavra significa também liberdade da retórica. 
Alguns dias depois vi os primeiros soldados norte-americanos. Eram afro-americanos. O primeiro ianque que encontrei era um negro, Joseph, que me apresentou às maravilhas de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram coloridos e tinham um cheiro bom.
Um dos oficiais (o major ou capitão Muddy) era hóspede na casa da família de dois dos meus companheiros de escola. Sentia-me em casa naquele jardim em que alguns senhores amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia um pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores norte-americanos, depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a de um negro culto em uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime le champagne…” Infelizmente, faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu primeiro chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o chiclete em um copo d'água para que ficasse fresco para o dia seguinte. 
Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz deu-me uma sensação curiosa. Haviam me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano. Nos meses seguintes descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local, mas Europeu. Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”, “armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”. Vi as primeiras fotografias do Holocausto e assim compreendi seu significado antes mesmo de conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido liberados. 
Hoje na Itália existem algumas pessoas que se perguntam se a Resistência teve algum impacto militar real no curso da guerra. Para a minha geração a questão é irrelevante: compreendo imediatamente o significado moral e psicológico da Resistência. Era motivo de orgulho saber que nós, europeus, não tínhamos esperado passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens norte-americanos que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era irrelevante saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam pagando seu débito. 
Hoje na Itália tem gente que diz que a Resistência é um mito comunista. É verdade que os comunistas exploraram a Resistência como uma propriedade pessoal, pois realmente tiveram um papel primordial no movimento; mas lembro-me dos resistentes com bandeiras de diversas cores. 
Grudado ao rádio, passava as noites — as janelas fechadas e a escuridão geral faziam do pequeno espaço em torno ao aparelho o único halo luminoso — escutando as mensagens que a Rádio Londres transmitia para a Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior parte eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que Franchi era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da Itália do Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói. Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo de extrema direita e foi até acusado de ter participado de um golpe de Estado reacionário. Mas que importa? Sogno ainda é o sonho da minha infância. A liberação foi um empreendimento comum de gente das mais diversas cores. 
Hoje na Itália tem gente que diz que a guerra de liberação foi um trágico período de divisão, e que precisamos agora de uma reconciliação nacional. A recordação daqueles anos terríveis deveria ser reprimida. Mas a repressão provoca neuroses. Se a reconciliação significa compaixão e respeito por todos aqueles que lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso até admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram. 
Mas quem são “eles”?
Se pensamos ainda nos governos totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial, podemos dizer com tranquilidade que seria muito difícil que eles retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias históricas diversas. Se o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder carismático, no corporativismo, na utopia do “destino fatal de Roma”, em uma vontade imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na recusa da democracia parlamentar, no anti-semitismo, então não tenho dificuldade para admitir que a Aliança Nacional, nascida do MSI (Movimento Social e Italiano), é certamente um partido de direita, mas tem muito pouco a ver com o velho fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo preocupado com os vários movimentos neonazistas ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o nazismo, e sua forma original, esteja ressurgindo como movimento capaz de mobilizar uma nação inteira. 
Todavia, embora os regimes políticos possam ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. Há, então, um outro fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos. 
Portanto, permitam-me perguntar por que não somente a Resistência mas toda a Segunda Guerra Mundial foram definidas em todo o mundo com uma luta contra o fascismo. Se relerem "Por quem os sinos dobram", de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos com os fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis. 
Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).
Durante os anos de McCarthy, os norte-americanos que tinham participado da guerra civil espanhola eram chamados de “fascistas prematuros” — entendendo com isso que combater Hitler nos anos 1940 era um dever moral de todo bom norte-americano, mas combater Franco cedo demais, nos anos 1930, era suspeito. Por que uma expressão como “fascist pig” era usada pelos radicais norte-americanos até para indicar um policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?
Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat (versão oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que subordina qualquer ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e estalinismo eram regimes totalitários. 
Agência Efe

Umberto Eco morreu na última sexta-feira (19/02), aos 84 anos, em sua casa, em Roma
O fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura quanto pela debilidade filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. O artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não tinha qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.
Começou como ateu militante, para depois firmar a concordata com a Igreja e confraternizar com os bispos que benziam os galhardetes fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais, segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali mesmo para provar sua existência. Deus estava, evidentemente, distraído. Nos anos seguintes, em seus discursos, Mussolini citava sempre o nome de Deus e não desdenhava o epíteto: “homem da Providência”. Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini. 
O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir-se — conseguindo mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace. Foi somente nos anos 1930 que surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista. 
Todavia, a prioridade histórica não me parece ser uma razão suficiente para explicar por que a palavra “fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma denominação pars pro toto para movimentos totalitários diversos. Não adianta dizer que o fascismo continha em si todos os elementos dos totalitarismos sucessivos, por assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não possuía nenhuma quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era um totalitarismo fuzzy[1]. O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideais políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É possível conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o livre mercado?
O partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que esperavam uma contrarrevolução. O fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante vinte anos proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”. Mas quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”, reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase jacobinas. 
Existiu apenas uma arquitetura nazista, apenas uma arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não havia lugar para Mies van der Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck tinha razão, não havia lugar para Darwin. Ao contrário, existiram certamente arquitetos fascistas, mas ao lado de seus pseudocoliseus surgiram também os novos edifícios inspirados no moderno racionalismo de Gropius. 
Não houve um Zdanov fascista. Na Itália existiam dois importantes prêmios artísticos: o Prêmio Cremona era controlado por um fascista inculto e fanático como Farinacci, que encorajava uma arte propagandista (recordo-me de quadros intitulados Ascoltando all radio un discorso del Duce ou Stati mentali creati dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo, patrocinado por um fascista culto e razoavelmente tolerante como Bottai, que protegia a arte pela arte e as novas experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único aceito. 
O poeta nacional era D'Annunzio, um dândi que na Alemanha ou na Rússia teria sido colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Foi alçado à categoria de vate do regime pro seu nacionalismo e seu culto do heroísmo — com o acréscimo de grandes doses de decadentismo francês. 
Tomemos o futurismo. Deveria ter sido considerado um exemplo de entartete Kunst, assim como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a violência, o risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos ao culto fascista da juventude. Quando o fascismo identificou-se com o império romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que um automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o luar) foi nomeado membro da Accademia d'Italia, que tratava o luar com grande respeito. 
Muitos dos futuros membros da Resistência, e dos futuros intelectuais do futuro Partido Comunista, foram educados no GUF, a associação fascista dos estudantes universitários, que deveria ser o berço da nova cultura fascista. Esses clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual em que circulavam novas ideias sem nenhum controle ideológico real, não tanto porque os homens de partido fossem tolerantes, mas porque poucos entre eles possuíam os instrumentos intelectuais para controlá-los. 
No curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma reação ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido elaborar seus protestos literários dentro da torre de marfim. O sentimento dos herméticos era exatamente o contrário do culto fascista do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro. 
O que não significa que o fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte, Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos confinados em ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e o executivo (que controlava o judiciário, assim como a mídia) emanava diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi não era devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político e ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos. 
Chegamos agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de Franco, pois o nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda. Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein, acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de atividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”:
1 - 2 - 3 - 4
abc bcd cde def
Suponhamos que exista uma série de grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 é semelhante a 2 e 4 e é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto c). O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2, mas sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas, Julios Evola. 
 
A despeito dessa confusão, considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista. 
1.   A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico. 
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.
Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente, como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva. 
Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.
Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden). A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. 
3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais. 
4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição. 
5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 
6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório. 
7. Para os que se vêem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson. 
8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão condenados a perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a força do inimigo. 
9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica uma sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa contradição. 
10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa. 
11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte. 
12. Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma inveja pênis permanente. 
13. O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”. De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo. 
14. O Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular. 
Depois de indicar os arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943 foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio, o fascismo havia caído e Mussolini tinha sido feito prisioneiro. Minha mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, depois de uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido Liberal. Até aquele momento pensei que só existisse um partido em todas as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional Fascista.
Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto esperto, logo me dei conta de que era impossível que tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim que eles já existiam como organizações clandestinas. 
A mensagem celebrava o fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” — Deus meu —, era a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre ocidental. 
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”. 
E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:
Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell'acqua della fonte
La bava degli impiccati
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull'erba secca del prato
I denti dei fucilati
Mordere l'aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini
Mordere l'aria mordere i sassi
Il nostro cuore non à più d'uomini.
Ma noi s'è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l'hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.
Na amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens
Mas lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.

Umberto Eco, O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais,
Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.
 

[1] Usado atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de contornos imprecisos, o termo fuzzy poderia ser traduzido como “esfumado”, “confuso”, “impreciso”, “desfocado”.
Fonte: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/43281/umberto+eco+14+licoes+para+identificar+o+neo-fascismo+e+o+fascismo+eterno.shtml

A história dos Direitos Humanos

O Alienista - Machado de Assis

O Elogio da Loucura - Erasmo de Rotterdam

Vídeo performance - O elogio da loucura (Mariana Collares)




"Digam de mim o que quiserem (pois não ignoro como a Loucura é difamada todos os dias, mesmo pelos que são os mais loucos), sou eu, no entanto, somente eu, por minhas influências divinas, que espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens". Erasmo de Rotterdam (1466-1536)

terça-feira, 8 de maio de 2018

Michel Foucault e o tratamento psiquiátrico


Michel Foucault e o tratamento psiquiátrico

 3 de janeiro de 2015  Álvaro F. Sotarelli Insight, Comportamento

Compartilhe esse conteúdo:

767Shares

Por meio da leitura do livro História da Loucura de Michel Foucault (2006), busco analisar as condições sociais das pessoas com transtorno mental. Partindo da visão que a Igreja tinha sobre o tratamento das pessoas com transtornos mentais ou aqueles que Foucault denomina como portadores da razão, que eram pessoas que viviam em miséria intelectual, física ou de sobrevivência, em uma sociedade cível, em que estava começando a surgir indícios de capitalismo.

Segundo a Igreja católica da época, estas pessoas viriam ao mundo nestas condições por terem, em vidas anteriores, cometidos pecados, como a heresia, por exemplo, e que o sofrimento destes acarretaria na conquista da paz de espírito, sendo que os demais indivíduos deveriam contribuir para este sofrimento.

Esta contribuição dos demais indivíduos é possível ser vista no decorrer do primeiro capítulo da obra estudada, em que é descrita a situação dos leprosos (uma doença que degenerava partes do corpo desses enfermos), causando medo, repulsa e discriminação, sendo que os demais indivíduos desconheciam o que estava acontecendo. Como não se sabia o que acontecia ou a causa para a lepra, então ela era considerada uma manifestação demoníaca, pois nesta época não havia conhecimento científico. Ao que era desconhecido dava-se explicações religiosas.

A Igreja e o Estado durante este período eram apenas um. Existiam reis, senhores feudais, mas os membros da Igreja eram quem tinham maior voz para tomar decisões dentro do meio social. E por conta deste poder centralizado da Igreja católica e por conta do contexto histórico em que este poder estava inserido, um contexto em que não havia razão científica para as coisas, mas sim uma razão religiosa, a Igreja influenciava no tratamento social das pessoas com transtorno mental e até mesmo de doenças orgânicas, como vimos no caso da lepra.

Como foi dito posteriormente, visavam um tratamento à base de dor e sofrimento, por considerarem manifestações demoníacas o desconhecido, acreditavam que esta forma de tratamento seria o ideal para salvar a alma das pessoas com a doença, que estes estavam pagando por pecados e então os demais indivíduos da sociedade deveriam discriminar e deixá-los sofrer para que assim, após a morte, conseguissem paz espiritual e salvação de sua alma.

Pode se explicar a prática de internamento surgindo pós Revolução Industrial, surgindo a princípio como instituições de caridade criada pela Igreja Católica, com o objetivo de abrigar aqueles que ficassem em situação de rua devido ao grande crescimento populacional, que era consequência da Revolução Industrial. Nestes abrigos criados com a prática de higienização eram atendidas pessoas em situação de rua, pobres, pessoas com doença orgânica ou física, e aqueles quem violavam as leis. Enfim, qualquer indivíduo poderia ser internado em hospitais recebendo os mesmos tratamentos.

Com a alta migração de indivíduos para os centros urbanos em que havia desenvolvimento de indústrias, houve uma superlotação nas ruas inglesas, surgindo assim a pobreza, e consequentemente a denominação de vários distúrbios psicológicos (que Philippe Pinel vem explicar posteriormente).

Um dos fatores que contribuíram para que o crescimento populacional aumentasse ainda mais, é que neste período a família era vista como um corpo só, detentor do mesmo sangue e que quando algum indivíduo cometesse um ato considerado vergonhoso para sua família ou tivesse um comportamento impróprio para os padrões sociais da época, como por exemplo, cometer crimes, ou ter alguma perturbação mental, este estaria sujando o nome e o sangue de sua família, portanto era abandonado por seus membros, deixando-o a sobreviver nas ruas.

Com a modernidade e o pensamento já secularizado e humanista, surge com as ideias de Pinel de que aqueles que possuíam perturbações mentais eram doentes, portanto deveriam ser tratados como doentes e não a base de violência como a Igreja católica previa. Houve então uma separação de instituição asilares, criando as prisões que atendiam aqueles que infringiam as leis.

Houve uma aproximação do direito com a psicologia, sendo que a psicologia entraria com o objetivo de diagnosticar até que ponto a sanidade do réu o consideraria criminoso ou portador de algum transtorno mental, para que assim haja uma distinção de tratamento entre doente e o não doente.

TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO NO BRASIL

Pode-se dizer que a psiquiatria no Brasil iniciou-se com a chegada da família real. A situação aqui, se repete da mesma maneira que havia sido na Europa. Criam-se instituições de caridade para abrigar pessoas em situação de rua, cenário que era bastante normal na sociedade brasileira após 1530, quando houve uma imigração em massa para as terras brasileiras, estrangeiros em busca de ascensão social e muitas vezes não conseguiam, então acabavam tendo que tornarem-se moradores de rua, mas esse não se torna o único motivo para o surgimento de moradores de rua.

A Europa via a “terra nova”, como era chamado o Brasil, como um “depósito”, em que o que era indesejável em terras europeias, eles mandavam para as terras brasileiras, incluindo doentes, prostitutas, infratores de leis, etc. Posteriormente, com a lei do sexagenário, as cartas e alforrias, e até mesmo com a abolição da escravidão, o número de moradores de rua cresceu mais ainda. Escravos libertos que saíam das fazendas sem rumo, sem saber o que fazer, ficavam nas ruas mendigando. Então as instituições de caridade vêm para servir como abrigo para as pessoas, pois a família real e a classe burguesa que aqui já se concentravam não queriam ter a seus olhos mendigos pedindo esmolas pelos centros urbanos, e muito menos trombar com negros ex-escravos pelas ruas. Nestas instituições era abrigado qualquer tipo de pessoa, sendo portador de doenças ou não. Posteriormente estas instituições tornam-se hospitais gerais, e estas pessoas que já estavam abrigadas nelas continuaram internadas, tendo o mesmo tratamento, a base de dor e sofrimento como era no modelo europeu.

Nestes hospitais psiquiátricos tantos os pacientes como os técnicos da área, viviam em condições degradantes. Os pacientes viviam em péssimas condições de higiene e alimentação, sua comida era jogada em colchetes, repetindo a forma como os porcos eram tratados em seus chiqueiros. Tinham poucas roupas, e muito dos pacientes ficavam nus, dormiam sob um fino pedaço de palha que era trocado raramente e que os pacientes defecavam e dormiam em cima de suas próprias fezes, passavam frio, passavam fome e até mesmo aqueles que estavam lá em ótimas condições mentais ou físicas, acabam por fim, desenvolvendo algum transtorno ou doença orgânica.

Pelo contexto social da época, como já foi dito acima, a família era considerada apenas um corpo e quando um deles cometia algo vergonhoso para sua família, muitas vezes este membro era abandonado, isso era frequente nos hospitais psiquiátricos. Muitas famílias deixavam seus membros nestes hospitais, esqueciam-se deles, esta realidade era favorável para os hospitais que se tornavam mercado de cadáveres, pessoas eram esquecidas em hospitais, enquanto esse esquecimento, não se sabe se era intencional ou não.

Pessoas eram esquecidas até chegarem a sua morte, e assim eram vendidas ou doadas para escolas de medicina, tendo seu corpo utilizado para estudos. A quantidade de cadáveres não identificados era tão grande, que muitas vezes iam vagões de trens buscarem para que fossem deportados para as instituições, servindo como material de estudo.

Dentre os tratamentos psiquiátricos a base de medicamentos, havia as cirurgias psicológicas, como a sangria e a lobotomia. Na sangria acreditava-se que a doença estava no sangue, então fazendo a eliminação do sangue, o paciente estaria curado. No caso da lobotomia, era feita em pessoas agressivas, tirava-se parte do cérebro sendo que a pessoa acabava tornando-se dócil e assim facilmente tratado, por isso muitos das pessoas que entravam nos hospitais sem nenhum tipo de transtorno, acabavam saindo com um diagnóstico.

Entre os hospitais que era um modelo manicomial, existiam os hospitais colônia, que a característica deles eram o trabalho como forma de terapia ocupacional para a recuperação das pessoas com transtorno mental, em que consideravam o trabalho como a melhor forma de tratamento da época para que pudessem ajudar seus pacientes a conseguirem sua recuperação.

Os técnicos da área da saúde e os estudiosos da área incluindo Michel Foucault e Erving Goffman, começaram a fomentar uma reforma psiquiátrica em congressos e eventos referentes a saúde mental, com diversas pessoas interessadas pelo assunto e pelo grande descaso dos setores da saúde para as condições desumanas dentro dos hospitais psiquiátricos.

Começaram nestas reuniões feitas pelos funcionários da área da saúde mental, a ideia de uma reforma psiquiátrica necessária, reivindicavam por mais atenção aos hospitais e aos pacientes, pediam por uma quantidade maior de verba, para contratar profissionais da área, que eram poucos, a maioria eram estagiários residentes de medicina, que recebiam pouco e trabalhavam muito, e essa situação colaborava para que os pacientes fossem destratados dentro dos hospitais.

Pensava-se em uma forma mais humana de tratar os pacientes, queriam o fechamento dos manicômios, surgindo os movimentos anti-manicomiais, que prevê o fechamento dos manicômios e tornando-se extinta a internação compulsória, a não ser em caso de vida ou morte do paciente ou das pessoas que as rodeiam.

Analisando os diferentes contextos e discursos históricos referentes a loucura e à psiquiatria, podemos perceber que o tratamento psiquiátrico é consequência do uso do conceito de loucura, e este conceito muda no decorrer dos tempos, modificando também as formas de tratamento. Antes o tratamento da pessoa com transtorno mental era a base de dor e de sofrimento, consideravam a melhor forma de tratar, desconheciam o que havia com estes indivíduos, consideravam manifestações demoníacas, e, portanto, mereciam sofrer para que pudessem alcançar a paz espiritual e seu lugar ao céu.

Hoje com o pensamento secularizado e o avanço da ciência, da medicina, da psicologia, da psiquiatria e outras ciências, vemos o tratamento psiquiátrico a base de conversação e compaixão, ainda não sabemos o que se passa com a pessoa com transtorno mental, e possivelmente ele também não sabe. A discriminação e a desumanização destes indivíduos não é a melhor forma de tratá-los.

Hoje temos o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) que se acredita que esta é a melhor forma de tratamento, com terapia ocupacional, em grupo ou não, para assim termos a melhoria do paciente. Acreditamos hoje, que a compaixão e o amor ao próximo se torna o melhor remédio para tratar estes indivíduos, mas mesmo assim isso não significa que daqui alguns séculos ou até mesmo anos, outra forma de tratamento seja descoberta e considerada como melhor, ou que daqui algum tempo o conceito de loucura se modifique, e estudiosos do futuro venham a criticar o que praticamos hoje.

AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Editora Fiocruz. Rio de Janeiro. 2007.

AMARANTE, P. Loucos pela vida: A trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Editora Fiocruz. Rio de Janeiro. 1995.

ARBEX, D. Holocausto brasileiro. Genocídio:60 mil mortos no maior hospício do Brasil. Editora geração. São Paulo. 2013.

BRESCIANI, M.S.M. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. Editora brasiliense. São Paulo. 1990.

DESVIAT, M. A Reforma Psiquiátrica. Editora Fiocruz. Rio de Janeiro. 1999.

FOUCAULT, M. A História da Loucura na Idade Clássica. Editora Perspectiva. São Paulo. 1995.

FOUCAULT, M.. Doença mental e psicologia. Editora tempo brasileiro. Rio de Janeiro. 1975.

HELMAN, C.G. Cultura, Saúde e Doença.Editora ArtMed. Porto Alegre. 2006.

Fonte: http://encenasaudemental.net/comportamento/insight/michel-foucault-e-o-tratamento-psiquiatrico/

Rumo ao fim dos manicômios

Reportagem

Rumo ao fim dos manicômios

A luta antimanicomial, o mais importante movimento pela reforma psiquiátrica no brasil, teve início durante o regime militar e ainda enfrenta desafios.

setembro de 2006

Paulo Amarante

Sempre que algum aluno me pergunta o que deve ler para começar a compreender a questão da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, indico sem pestanejar "O alienista", de Machado de Assis, conto publicado sob forma de folhetim entre 1881 e 1882. Machado foi, sem sombra de dúvida, o pioneiro na crítica ao saber e às instituições psiquiátricas no Brasil (e talvez no mundo - "Enfermaria no 6", de Anton Tchekhov, é de 1892). Nesse conto clássico, Machado antecipou todas as críticas ao paradigma psiquiátrico que anos depois seriam aprofundadas por autores como Michel Foucault, Franco Basaglia, Erving Goffman, Ronald Laing, David Cooper, entre outros. 

É realmente impressionante a sagacidade do autor, a forma como ele apreende o processo de constituição da psiquiatria e como identifica e destaca seus pontos mais frágeis e seus dispositivos de poder. Primeiro quando se refere à necessidade de criação do hospício como uma demanda externa, artificial, vinda de um cientista recém-chegado da Europa: "A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes", diz Simão Bacamarte, protagonista da história. Depois quando evoca o princípio universal de internar todos os loucos em um único espaço, pois só aí seria possível pesquisar e identificar todos os tipos de loucura. Sem falar na idéia segundo a qual a loucura seria a ausência da razão: "Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia".

Em "O alienista" tudo nos aproxima da história real de Philippe Pinel e de seu trabalho na construção do alienismo no final do século XVIII. Suspeito, aliás, que Machado de Assis tenha acompanhado bem de perto a trajetória de João Carlos Teixeira Brandão, conhecido como o "Pinel Brasileiro". Fundador da psiquiatria brasileira, Brandão fez severas críticas ao primeiro hospício no país, o D. Pedro II, no Rio de Janeiro, do qual foi nomeado diretor médico em 1890. Nesse mesmo ano, assumiu também a direção da Assistência Médico-Legal aos Alienados, o primeiro órgão nacional de normatização e coordenação da assistência psiquiátrica. 

Com Machado de Assis podemos questionar: por que um saber tão frágil e inconsistente acumula tanto poder? Essa foi a pergunta de Foucault, muito tempo depois de Simão Bacamarte já havê-la respondido. Aliás, se Machado tivesse escrito "O alienista" um século depois, poderíamos concluir que Foucault, Basaglia e todos os outros aos quais me referi acima estavam entre suas leituras.

Ou poderíamos suspeitar que foram eles que leram o Bruxo do Cosme Velho, mas não o citaram em suas obras. Por intermédio de Simão Bacamarte, Machado questiona a idéia de ciência como produtora de verdade e sua pretensão de se apresentar como um saber neutro e desinteressado; denuncia a função da psiquiatria na construção do ideal de normalidade e de sociedade, bem como a relação entre a psiquiatria e ordem pública. 

Inicialmente é importante observar que a psiquiatria como atualmente a conhecemos nasceu com o nome de alienismo. Essa foi a denominação dada por Pinel à ciência dedicada ao estudo da alienação mental. Reconhecido como o pai da psiquiatria, uma enorme quantidade de hospitais psiquiátricos em todo o mundo leva seu nome; nome esse que também virou sinônimo popular e pejorativo de "louco" em muitos países. A expressão "alienado" tem a mesma origem etimológica de alienígena, alien, estrangeiro, de fora do mundo e da realidade.

Colônias de Alienados
Em A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo, Robert Castel analisa as estratégias adotadas na construção do que ele denomina de síntese alienista. E destaca, em primeiro lugar, o conceito de alienação mental como distúrbio da razão, que torna o alienado alguém incapaz de exercer a cidadania, historicamente resgatada como princípio da democracia e da república instalada na França revolucionária de Pinel. É importante lembrar que o médico francês foi deputado federal constituinte, um político atuante que participou da elaboração da primeira carta constitucional - que deu origem à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Um segundo aspecto discutido por Castel é o princípio do isolamento, recurso necessário para retirar o alienado do meio confuso e desordenado e incluí-lo em uma instituição disciplinar regida por regulamentos, normas, rotinas, mecanismos vários de gestão da vida cotidiana que, em tese, reordenariam o mundo interno do alienado e o resgatariam para a razão. Essa perspectiva já delineia o terceiro aspecto da síntese alienista, que caracteriza a estratégia denominada tratamento moral, um conjunto de medidas que submeteriam o alienado ao jugo da ordem e da norma.

Uma das mais importantes aplicações do tratamento moral estava no trabalho. Daí a origem de inúmeras instituições psiquiátricas, denominadas "colônias de alienados", espalhadas por todo o mundo, particularmente no Brasil, onde foram responsáveis por parte considerável de nossos quase 100 mil leitos psiquiátricos no final da década de 1980. A idéia era levar os alienados para os hospitais-colônia, onde pudessem trabalhar, principalmente na lavoura, pois o trabalho os recuperaria. A expressão "colônia" é muito curiosa e provém da noção de um aglomerado de pessoas de uma mesma origem que se estabelecem em terra estranha, voltadas para um mesmo objetivo. Com essa concepção foram criadas, em 1890, meses após a proclamação da República, as primeiras colônias de alienados do Brasil, na Ilha do Governador, estado do Rio de Janeiro. Lá trabalhou o pai do escritor Lima Barreto que, assim como o filho, foi mais tarde internado num hospício. Isso resultou, pelas mãos do filho, em algumas das mais importantes obras da literatura brasileira, todas elas muito críticas ao modelo e às instituições psiquiátricas: o Diário do hospício, O cemitério dos vivos e Como o homem chegou. Não considero equivocado incluir, no aspecto da crítica à ciência e ao positivismo de Estado, o Triste fim de Policarpo Quaresma - outra obra-prima.

Considerando a extensão do Brasil, assistimos a uma proliferação de macrocolônias de alienados por todos os cantos do território nacional, quase todas criadas pelos psiquiatras Juliano Moreira e Adauto Botelho, diretores nacionais de assistência psiquiátrica entre 1910 e 1930, e 1930 e 1940, respectivamente. Em quase todos os estados existem ou existiram manicômios com o nome de um ou de outro, quando não de ambos. A colônia do Juqueri, em São Paulo, foi a maior de todas, chegando a abrigar 16 mil internos. 

No início dos anos 40 havia 24 mil leitos psiquiátricos no Brasil, dos quais 21 mil eram públicos e 3 mil privados. Depois do golpe militar de 64, o setor saúde viveu o mais radical processo de privatização do mundo. A psiquiatria foi a área mais explorada e preferida pelas empresas privadas, na medida em que a falta de direitos dos usuários, somada à baixa exigência de qualidade no setor, facilitava a construção ou transformação de velhos galpões em "enfermarias". A "indústria da loucura", como ficou conhecida, fez o número de leitos saltar de 3 mil para quase 56 mil, ao mesmo tempo que os investimentos no setor público começavam a diminuir. Responsável por essa política de privatização desmesurada, Leonel Miranda, então ministro da Saúde, tornou-se proprietário do maior manicômio privado do mundo, a Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, estado do Rio, que até 2002 tinha quase 2 mil leitos totalmente financiados com recursos do Sistema Único de Saúde. Hoje a instituição funciona sob intervenção federal, ainda com cerca de 600 leitos.

Miséria e solidão
Ainda estudante de medicina, trabalhei como estagiário em um hospital-colônia de uma cidade na Grande Vitória, Espírito Santo. Lá fui marcado definitivamente pela trágica experiência: centenas de pessoas nuas, imundas, fétidas. Imagem e odor do abandono, do descaso, da miséria e da solidão. Para um jovem estudante que sonhava aliviar o sofrimento psíquico das pessoas, aquele certamente era um mau começo.

Saí do Espírito Santo acreditando que aquelas condições absolutamente precárias deviam-se ao fato de eu estar em um hospital público de uma cidade pobre, em um estado esquecido pelo desenvolvimento. Parti para o Rio de Janeiro, mas, para minha decepção, encontrei uma situação muito semelhante e, por que não dizer, ainda pior. Além da exclusão de pessoas em sofrimento mental, encontrei presos políticos nos hospitais psiquiátricos, que em nada se diferenciavam dos campos de concentração.

Em 1978, eu e mais dois colegas plantonistas do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, decidimos denunciar uma série de violações aos direitos humanos das pessoas lá internadas. Como se tratou de uma denúncia escrita, registrada em documento oficial, a resposta foi imediata e violenta, como era comum naqueles tempos. Além de nós três, foram demitidos mais 263 profissionais que ousaram nos defender ou que confirmaram nossas denúncias. Nasceu aí o movimento de trabalhadores da saúde mental que, dez anos mais tarde, transformou-se no movimento de luta antimanicomial, ainda hoje o mais importante movimento social pela reforma psiquiátrica e pela extinção dos manicômios.

Não denunciamos apenas os maus-tratos aos "pacientes psiquiátricos", mas também a presos políticos que, a exemplo dos gulags da Rússia stalinista, eram internados e torturados nessas instituições. Descobri que a situação do Rio de Janeiro era a mesma do Espírito Santo e, para minha tristeza, constatei mais tarde, que o modelo era quase universal, predominantemente asilar e manicomial, com milhares de pessoas abandonadas em macroinstituições financiadas pelo poder público, fossem elas públicas ou privadas. Na época os leitos privados já eram mais de 70 mil, todos pagos pelo setor público.

O ano de 1978 foi importante também pela chegada ao Brasil de Franco Basaglia, o psiquiatra italiano que fundou o Movimento da Psiquiatria Democrática e liderou as mais importantes experiências de superação do modelo asilar-manicomial em Gorizia e Trieste. Ele foi o primeiro a colocar em prática a extinção dos manicômios, criando uma nova rede de serviços e estratégias para lidar com as pessoas em sofrimento mental e cuidar delas. O caráter revolucionário dessa nova forma de cuidado estava expresso não apenas pelos novos serviços que substituíam os manicômios, mas pelos mais variados dispositivos de caráter social e cultural, que incluíam cooperativas de trabalho, ateliês de arte, centros de cultura e lazer, oficinas de geração de renda, residências assistidas, entre outros.

A experiência de Basaglia serviu de inspiração para a lei 180, aprovada na Itália em 13 de maio de 1978, que determinou a extinção dos manicômios e a substituição do modelo psiquiátrico por outras modalidades de cuidado e assistência. A Lei Basaglia, como ficou conhecida, é, ainda hoje, a única no gênero em todo o mundo.

Para nós a vinda de Basaglia ao Brasil naquele ano de 1978 foi considerada a "sorte grande". E ele retornou ao país no ano seguinte, quando fez uma visita ao Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais, um dos mais cruéis manicômios brasileiros. Suas visitas seguidas acabaram produzindo uma forte e decisiva influência na trajetória de nossa reforma psiquiátrica. Em Barbacena, Basaglia comparou a colônia de alienados a um campo de concentração, reforçando nossas denúncias de maus-tratos e violência. Sua presença aqui recebeu tratamento e atenção especiais da imprensa, além de dar origem ao clássico documentário de Helvécio Ratton, Em nome da razão, de 1980, um marco da luta antimanicomial brasileira, ao lado de uma premiada série de reportagens de Hiran Firmino, publicadas inicialmente no jornal Estado de Minas e posteriormente pela Editora Codecri sob o título Nos porões da loucura, de 1982.

A principal conseqüência da relação com Franco Basaglia, entretanto, ocorreu em 1989, em Santos. Após uma série de mortes em uma clínica psiquiátrica particular conveniada ao extinto Inamps, a prefeitura decidiu intervir e desapropriá-la, iniciando um trabalho revolucionário semelhante àquele de Franco Basaglia na Itália. Em seu lugar foram implantadas novas maneiras de lidar com pessoas em sofrimento psíquico, como os núcleos de atenção psicossocial (Naps) abertos 24 horas, sete dias por semana. Foram criadas oficinas de trabalho para geração de renda dos ex-internos, além de cooperativas de trabalho e de diversos projetos culturais de inserção social, entre os quais merece destaque o Rádio e TV Tam Tam.

Ainda em 1989, o deputado federal Paulo Delgado apresentou o projeto de lei de sua autoria (3657/89), cuja justificativa fazia menção explícita à lei italiana 180. Tudo levava a crer que o projeto seria aprovado num piscar de olhos, mas não foi. As associações dos proprietários de hospitais perceberam o risco que a lei representava para seus negócios milionários e organizaram lobbies em Brasília. Além disso, alarmaram os parentes dos internos (em geral tão carentes e desassistidos quanto a maioria da população), fazendo-os crer que os pacientes seriam devolvidos - da noite para dia - caso o projeto de lei fosse aprovado. O tiro, no entanto, saiu pela culatra. O debate acabou repercutindo positivamente na opinião pública. A mais antiga associação de parentes e usuários, a Sosintra, do Rio de Janeiro, tomou a frente na defesa da reforma psiquiátrica e fortaleceu a posição contra os manicômios. Leis do mesmo tipo foram aprovadas em diversos estados. Experiências de desmontagem de estruturas manicomiais passaram a ser implantadas pelos quatro cantos do país. A transformação do modelo virou prática política e social antes mesmo de virar lei, a despeito do fato de muitas das experiências não vingarem no Brasil. A da reforma psiquiátrica veio a reboque das práticas inovadoras que a anteciparam. 

A Lei Paulo Delgado acabou sendo rejeitada, mas, em compensação, foi aprovado um substitutivo que aperfeiçoou muitos aspectos do modelo assistencial psiquiátrico brasileiro. Atualmente o país conta com quase mil serviços de saúde mental abertos, regionalizados, com equipes multidisciplinares, envolvendo vários setores sociais e não apenas o setor da saúde. Um grande avanço, sem dúvida. 

Reforma em risco
Contudo, a política nacional de saúde mental corre muitos riscos, entre os quais reduzir o processo de reforma psiquiátrica a uma mera mudança de modelo assistencial. Trata-se de um processo social complexo, no qual é necessária uma reflexão sobre o modelo científico da psiquiatria, que não consegue ver saúde nas pessoas, apenas doenças. A dimensão sociocultural também é muito importante, pois trabalhamos para transformar a relação da sociedade com as pessoas em sofrimento mental. Afinal fomos nós, alienistas/psiquiatras, que, desde Pinel, ensinamos a todos que pessoas com algum tipo de problema mental são perigosas, incapazes, insensatas... Quando uma sociedade defende que uma parte dos seus membros não pode conviver com os demais, cumpre a nós compreendermos os motivos e intervir. Por que não podem viver como nós, conosco, em nosso meio? Por que são negros? Por que são índios? Por que são loucos? 

Desde 1986, quando participamos do III Encontro Latino-Americano de Alternativas à Psiquiatria, em Buenos Aires, adotamos o lema "Por uma sociedade sem manicômios". O Movimento Nacional de Luta Antimanicomial nasceu aí. E tem alcançado êxitos fantásticos, que vão da criação de novas leis, práticas e políticas até a sensibilização da cultura nacional por meio de várias estratégias, como a produção de vários filmes, entre eles Bicho de 7 cabeças, de Laís Bodansky (2000), baseado no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano; Estamira, de Marcos Prado (2004), ou ainda Estrela de 8 Pontas, de Marcos Magalhães (1996). Sem falar do Grupo Teatral Pirei na Cena, da TV Pinel, da Rádio Cala a Boca Já Morreu, da Rádio Antena Virada, do Grupo Teatral Ueinz! e do Coral Cênico de São Paulo entre outras iniciativas.

O grande mérito do processo brasileiro de reforma psiquiátrica está no fato de, em vez de tratar de doenças, tratar de sujeitos concretos, pessoas reais. Lida, portanto, com questões de cidadania, de inclusão social, de solidariedade e, por isso, não é um processo do qual participam apenas profissionais da saúde, mas também muitos outros atores sociais. 

O hospício, ou manicômio, caminha inevitavelmente para o fim devido a seu caráter arcaico de instituição fundada há mais de 300 anos para responder a outras demandas sociais. Sua persistência está muito mais relacionada ao fator econômico do que ao valor terapêutico ou social. Os hospícios, como já nos ensinou Simão Bacamarte, devem ser fechados. Esse deve ser o destino de todas as Casas Verdes, mesmo das que se escondem atrás de discursos progressistas. Quem nos garante que o alienado não é o alienista? A frase de Caetano Veloso "de perto ninguém é normal" tem sido pretexto para questionarmos o conceito de normalidade, tão caro no campo da saúde mental. Curiosamente, a mesma frase foi utilizada em um congresso de psiquiatria em São Paulo para demonstrar como toda a sociedade é, no fundo, carente de algum tipo de terapêutica (leia-se de medicamentos, cujo fabricante financiava o evento). 

Tenho observado que os órgãos de representação da categoria médica e dos psiquiatras começam a resistir à idéia da reforma psiquiátrica. Isso me parece totalmente equivocado. Os profissionais comprometidos com a boa prática médica não podem esquecer que, certa vez, se aliaram aos proprietários de hospitais e se tornaram subempregados, funcionários desqualificados, mal pagos e desrespeitados. Não podem esquecer também que se aliaram, outra vez, aos empresários de seguro-saúde, e deles se tornaram escravos, sem autonomia profissional e sem controle sobre as possibilidades terapêuticas. Em que pesem todos os problemas e limitações, é no SUS que ainda podemos, não apenas médicos, mas todos os profissionais do setor, realizar as possibilidades reais da saúde em nosso país. Seja porque o SUS é o maior e mais promissor mercado de trabalho nessa área (e não se iludam quanto a isso), seja porque é o mais democrático e inclusivo sistema de saúde público do mundo. Aceito cartas com argumentações que provem o contrário ou que me provoquem a pensar de forma distinta.

Para conhecer mais

Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Franco Basaglia. Garamond, 2005.

A reforma psiquiátrica. Manuel Desviat. Editora Fiocruz, 2006.

Esperança equilibrista: cartografias de sujeitos em sofrimento psíquico. Maria Bernardete Dalmolin. Editora Fiocruz, 2006.

Manicômios, prisões e conventos. Erving Goffman. Perspectiva, 1961

Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/rumo_ao_fim_dos_manicomios.html